a máquina de fazer espanhóis

É um livro bem conseguido, surpreendentemente maduro para um autor ainda jovem, sobre as peripécias da vida de um octogenário num lar de 3ª idade.

O sr. Silva enviúva depois duma longa vida ao lado da mulher que ama (” eu preferia abdicar de um filho que não conhecera para continuar partilhando a minha vida e crescendo como indivíduo ao lado da mulher que trazia definição a todas as incompletudes do meu ser e as colmatava“) e tem de aprender a viver sem ela (“com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir.com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder.”)

A entrada no lar é traumatizante (“caí sobre a cama e julguei que fui caindo por horas, rostos e mais rostos, colocando-se diante de mim,e eu por ali abaixo, caindo, sem saber de nada. quando,por fim, me levantei, estava a anos-luz do homem que reconheceria, e aprender a sobreviver aos dias foi como aceitar morrer devagar, à revelia de tudo quanto me pareceria menos cruel“) e segue-se um caminho de aprendizagens (“éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e abrir caminho até morte dentro, essa é que era a essência possível da felicidade, aguentar enquanto desse“) e de defesas (“muito do que não existe é do mais importante da vida, não despreze nada, agarre-se a uma fantasia se for boa, que a realidade é feita desses momentos mais espertos de lhe fugirmos de vez em quando.”)

Percorre um calvário de saudade (“sinto o estranho medo de pensar que vou encontrá-la fisicamente, quem sabe já desfigurada como um monstro irreconhecível num livro de terror. como se se tivessem esquecido de a cobrir com a terra. porque a sua morte me aterroriza. a morte dela não passa“) e de revolta (“tinham um valor alto no comércio da sobrevivência difícil a que estávamos condenados. éramos como perigosos, manifestamente perigosos para o mundo“), até aceitar o envelhecimento (“quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores nas costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios“) e a perda (“o américo sentou-se comigo na minha cama e aplaudiu o gesto. sabia que aquilo significava que eu aveludava os modos e me ia apaziguando com o destino. eu também o sabia), e fazer o luto (“o américo esperou uns segundos por que me acalmasse.procurou um silêncio limpo como uma folha muito limpa onde pudesse escrever uma frase mais digna e disse, um dia essa saudade vai ser benigna, a saudade da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu de vida. um dia a sua esposa vai ser apenas uma memória que já não dói e que lhe traz apenas felicidade“).

Por fim, reconcilia-se com o seu destino (“como se nós, eu e o silva da europa, o senhor pereira e mais o anísio dos olhos de luz, fôssemos uma família, uma outra família pele qual eu não poderia ter esperado, unida sem parecenças no sangue, apenas no destino de distribuirmos a solidão uns pelos outros. era uma irmandade de coração, uma capacidade de ser leal como nenhuma outra“) e aceita as intermitências da vida (“o tempo guarda cápsulas indestrutíveis porque, por mais dias que se sucedam, sempre chegaremos a um ponto onde voltamos atrás, a um início qualquer, para fazer pela primeira vez alguma coisa que nos vai dilacerar impiedosamente porque nessa cápsula se injecta também a nitidez do quanto amávamos quem perdemos, a nitidez do seu rosto“).

Um livro terno e pleno de empatia.

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